terça-feira, 29 de março de 2011

Físico diz que setor saúde deve participar do planejamento nuclear do país

A catástrofe natural que ocasionou o acidente com os reatores do Complexo Nuclear de Fukushima, no Japão, gerou um alerta para que todo o mundo reveja seus projetos nucleares. E, no Brasil, não é diferente. O país conta com um programa nuclear, mas há setores da sociedade contrários a essa opção. O momento, portanto, é de promover um rico debate sobre o tema, com participação intensa do setor saúde e da população. Em entrevista ao Informe Ensp, o físico e pesquisador-visitante do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Tarcisio Cunha contextualiza o acidente ocorrido no Japão, explica as consequências da radiação à população e convoca o setor saúde para discutir o futuro do país em relação ao seu programa nuclear.
No dia 11 de março, um forte abalo sísmico atingiu o nordeste do Japão, com magnitude 8,9 na escala Richter e epicentro no oceano, a aproximadamente 130 km da cidade litorânea Sendai. O evento trouxe diversos transtornos para a população japonesa, entretanto é o acidente com os reatores do Complexo Nuclear de Fukushima que tem causado medo e preocupação em função dos efeitos da radiação. O senhor pode contextualizar a situação do Japão?
Tarcisio Cunha: Em primeiro lugar, o que ocorreu no Japão foi uma catástrofe natural, que atingiu reatores nucleares. Ao contrário do que muitos meios de comunicação vêm divulgando, não se trata de um acidente nuclear, mas sim de um acidente com reatores nucleares. É uma diferença sutil? Talvez. Mas, se quisermos debater o tema com isenção, é preciso colocar as coisas em termos bem claros.
Outras perguntas que muitos fazem: Os reatores atingidos por essa catástrofe estão colocando em risco a saúde da população? Sim, é verdade! Eles podem provocar um desastre como o acidente em Chernobyl, como tem sido divulgado? A resposta é que a probabilidade é muito pequena. Para isso seria preciso que um dos reatores tivesse seu núcleo exposto em consequência de uma rachadura na parede do vaso, e mesmo assim não seria uma explosão nuclear. Reatores nucleares não são bombas nucleares. A necessidade de resfriar os núcleos dos reatores decorre do perigo real da pressão interna provocar danos às paredes de isolamento, liberando para o ambiente altas quantidades de materiais radioativos.
Em Fukushima, são quatro os reatores em operação atingidos pelo cataclismo, e todos foram construídos na década de 80. Embora tenham sofrido algumas atualizações tecnológicas, são de concepção antiga e ainda assim resistiram a dois impactos de grandes proporções ocorridos em sequência: terremoto e tsunami. Apesar de sua longevidade, seus núcleos vêm resistindo bravamente até agora. Houve o risco de um acidente de maiores proporções em Fukushima, mas o pior já passou, e a situação está sendo progressivamente controlada. Um problema é a falta de informação técnica precisa sobre as substâncias liberadas e o estado dos núcleos dos reatores em função da impossibilidade dos técnicos se aproximarem para realizar medições.
Por outro lado, uma grande e boa consequência desse acidente é que todos os projetos de reatores nucleares estão sendo revistos! E, claro, para melhor, com o objetivo de aumentar sua segurança, pois eles são chamados de reatores de terceira geração.
Conforme foi dito, a falta de informação é, em parte, consequência justamente da impossibilidade de funcionários se aproximarem dos reatores para realizar medições. Da mesma forma, foi determinado um isolamento nas imediações da usina para proteger os moradores do local. Quais os riscos à saúde humana decorrentes da exposição às substâncias radioativas liberadas para o ambiente?
Cunha: As substâncias radioativas provocam agravos à saúde humana de duas formas. A exposição por irradiação, que se dá sem contato, e a exposição por contaminação, em que o contato está presente. Esta última pode ser externa ou interna, quando há ingestão de elementos radioativos. Por exemplo, no caso do Japão, uma das informações divulgadas pela imprensa dá conta do vazamento de iodo radioativo para a atmosfera. Essa liberação é prevista em acidentes nucleares, e aprendemos bastante sobre ela com o acidente de Chernobyl. O iodo inalado é absorvido pela glândula tireoide.
Quando há acidentes desse tipo, uma medida preventiva é a administração de iodo inerte à população, em forma de comprimidos. A ideia é saturar a tireoide com iodo inerte para evitar que ela absorva o iodo radioativo. No caso brasileiro, por exemplo, o Ministério da Saúde editou portaria para manter estoques locais de iodeto de potássio em diversos pontos na área das usinas de Angra dos Reis para administração à população caso ocorra emergência com liberação de iodo radioativo. Isso está equacionado em Angra por intermédio da Defesa Civil em colaboração com a Secretaria Municipal de Saúde, que atua na distribuição e administração do medicamento aos cidadãos.
A população japonesa tem se monstrado muito preocupada em relação à sua alimentação. Como se dá essa contaminação?
Cunha: Substâncias radioativas atingem e se diluem na água ou contaminam o solo. Em algumas regiões do Japão, a água potável foi desaconselhada para consumo por crianças de até 1 ano. É uma medida preventiva. A OMS, acatando recomendações da United Nations Scientific Committee on the Effects of Atmomic Radiation (Unscear), estabelece um nível para consumo seguro e outro nível bem maior para intervenção. No caso referido, a água superou o primeiro nível, o de consumo seguro. Por isso, apenas as crianças foram excluídas do consumo.
O solo, quando recebe carga de contaminantes radioativos, pode transferi-los para os vegetais, que, por sua vez, são consumidos pelo homem e pelo gado e, na sequência, passam para a carne e o leite, como aconteceu em Chernobyl. Esse processo foi reportado no caso do Japão, mas as doses são baixas. Países como o Canadá suprimiram totalmente a importação de alimentos do Japão, mas a Europa preferiu apenas monitorar os níveis e prosseguir consumindo aqueles produtos.
Mas o vento também pode transportar essas partículas radioativas, correto?
Cunha: Sim, a dinâmica atmosférica é um fator de dispersão de contaminantes de qualquer tipo, não somente radioativos. No caso do Japão, é preciso notar que essas substâncias não saíram do núcleo do reator em grandes quantidades. Não houve um processo explosivo, elas foram liberadas na quantidade necessária para aliviar a pressão no compartimento de contenção. O vapor liberado contém substâncias que, misturadas ao ar, são levadas por correntes de ar. Toda dinâmica atmosférica tem de ser levada em consideração para saber o destino dessas substâncias. Os instrumentos atuais são extremamente sensíveis, de modo que têm sido reportados aumentos da radioatividade ambiental em diversos lugares, porém em quantidade muito reduzida. A atmosfera conduz, mas também dilui.
Para se ter uma ideia, testes nucleares feitos por EUA, Rússia, França, Grã-Bretanha e outros provocaram aumento da radioatividade geral do planeta. Hoje, quando se calcula a dose que cada cidadão recebe de radioatividade só por viver no planeta Terra, se computa uma parte devida a Chernobyl e outra devida àqueles testes nucleares pela Unscear.
Quais são as principais doenças associadas à exposição às substâncias radioativas?
Cunha: As formas de exposição referidas anteriormente podem ser classificadas pela sua intensidade. Exposição aguda se refere à alta intensidade em curto espaço de tempo. Exposição crônica é de baixa intensidade e duração prolongada. Exposição aguda se manifesta em curto prazo por meio de síndromes cutâneas se forem externas e, se forem internas, dependem do órgão afetado.
A exposição crônica produz as chamadas doenças radioinduzidas. Certas neoplasias e más-formações congênitas são exemplos. Até agora, o acidente que envolveu os reatores de Fukushima produziu exposição aguda apenas em trabalhadores das usinas que estiveram próximos aos reatores e que tiveram seus trajes danificados. Para a população em geral, os impactos ambientais tendem a ser diluídos e, portanto, serão do tipo exposição crônica: consumo de água e alimentos, principalmente, que terão de ser monitorados por algum tempo.
O Brasil tem um programa nuclear civil. De que forma áreas como a da saúde, por exemplo, têm participado das decisões do país nesse aspecto?
Cunha: A situação em Fukushima vai gerar um debate político bastante rico, que não podemos preterir: o que o Brasil quer para seu programa nuclear civil? Hoje, a opção do Estado brasileiro é favorável ao programa nuclear, mas há setores da sociedade que são contrários, e alguns estão aproveitando o momento para aquecer o debate. O que deve ser evitado é o uso de cargos públicos para atrapalhar o desenvolvimento de um programa definido por um Estado livre, democrático, soberano.
O Brasil tem algumas instalações sensíveis dentro do esforço nuclear: a Usina de Angra, a fábrica de combustíveis em Resende, diversos reatores de pesquisa e três minas de urânio. Uma já desativada em Poços de Caldas/MG, uma em operação em Caetité/BA, e outra a ser licenciada em Itataia/CE, e mais três ou quatro reatores estão sendo planejados. O debate sobre a vigilância e proteção à saúde neste parque industrial deve ser amplo e claro para a população, que deve estar ciente do equilíbrio entre importância para o país e segurança para a população. Esse debate é indispensável e urgente, independentemente da discussão sobre os rumos do programa nuclear brasileiro. O servidor da saúde tem de agir independentemente de suas convicções sobre a necessidade ou não de tal programa.
Isso nos conduz à questão central: o setor saúde tem de participar do planejamento de longo prazo do país. Somente assim se conseguirá a abrangência necessária para garantir – como o Japão garantiu – que sua população tivesse uma atuação competente e madura do Estado. Neste ponto, não podemos evitar a pergunta: se o setor saúde for chamado a participar desse planejamento de longo prazo, teria a necessária compreensão e base técnica para contribuir?
Mas os pesquisadores têm, de fato, se inserido nessas discussões? Como atraí-los?
Cunha: Temos excelentes quadros. Especialistas como Nelson Valverde – por favor, sem detrimento de outros de semelhante envergadura – é referencia mundial e colaborador da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea). Entretanto, há uma patente demanda reprimida para profissionais de saúde e pesquisadores nessa área de saúde e radioatividade. O tema nuclear é carregado de um pouco de estigma. Talvez essa seja uma das dificuldades.
Qual a importância da comunicação de risco em casos como esse do Japão? Qual a efetividade dessa estratégia para informar a população de forma competente?
Cunha: Fazemos parte da Fiocruz, uma instituição científica de referência no campo da saúde pública, e devemos redobrar nossos esforços para este aspecto da Comunicação de Risco em Saúde pelo seguinte motivo: há relativamente pouco tempo, dúvidas sobre o impacto à saúde, potencial ou real, trazido por algum fato novo, eram respondidas pela ciência. Hoje em dia prolifera a incerteza científica. Um exemplo contundente é sobre o uso da tecnologia de comunicação sem fio – o telefone celular. Os resultados de pesquisas científicas se dividem entre os que detectam e os que não detectam efeitos nocivos.
Na área da radioatividade natural aumentada, como a que existe nas regiões de mineração de urânio, a situação é semelhante. Há pesquisas que afirmam e outras que negam efeitos nocivos à saúde da população. Apesar dessas situações de incerteza científica, tenho a opinião de que o setor saúde tem a vocação para administrar esse conflito. A comunicação competente de risco em saúde deve ser realizada por profissionais de saúde que tenham a capacidade de conhecer o tema envolvido, a ponto de contribuir para o debate técnico, científico e tecnológico, e ao mesmo tempo sejam capazes de ‘traduzir’ essas questões para a população. Mais importante ainda é compreender que a comunicação de risco em saúde tem, forçosamente, de colher com competência os anseios da população e trazê-los para o debate acadêmico, buscando soluções reais e não apenas acadêmicas.
É particularmente complexa a comunicação quando as respostas aos anseios não são as esperadas, quando contrariam a expectativa geral. Enxergo na comunicação de risco em saúde uma proposta de equilíbrio para lidar com a complexidade das questões sociais envolvendo saúde pública, até mesmo como patamar para o avanço do processo democrático como um todo, centrado nessa ideia de saúde que temos no Brasil. Um modelo de saúde para todos, um modelo dialogal e interativo com a sociedade. Penso que esse é um patamar firme para um desejado aperfeiçoamento democrático.
Entrevista realizada por Filipe Leonel, da Agência Fiocruz de Notícias, publicada peloEcoDebate, 28/03/2011

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