quinta-feira, 23 de junho de 2011

Carta aberta aos bispos católicos de todo o mundo *.

O teólogo Hans Küng avalia o pontificado de Bento XVI como o das oportunidades perdidas. No quinto aniversário de sua chegada ao Vaticano, pede ao clero que reaja à crise da Igreja, tornada ainda mais aguda pelos abusos a menores:

Hans Küng

Estimados bispos.

     Joseph Ratzinger, agora Bento XVI, e eu fomos entre 1962-1965 os dois teólogos mais jovens do Concílio. Agora, ambos somos os mais idosos e os únicos que continuam em plena atividade. Sempre entendi meu trabalho teológico como um serviço à Igreja. Por isso, preocupado por esta nossa Igreja, mergulhada na mais profunda crise de confiança desde a Reforma, vos dirijo uma carta aberta no quinto aniversário do acesso ao pontificado de Bento XVI. Não tenho outros meios de chegar até vós.
     Apreciei muito que o Papa Bento, logo depois de sua eleição, me convidasse, seu crítico, para uma conversa de quatro horas, que decorreu amistosamente. Naquele momento isto me fez conceber a esperança de que Joseph Ratzinger, meu antigo colega na Universidade de Tubinga, tivesse encontrado, apesar de tudo, o caminho para maior renovação da Igreja e o entendimento ecumênico no espírito do Concílio Vaticano II.
     Minhas esperanças – e a de tantos católicos e católicas comprometidos – desgraçadamente não se cumpriram, coisa que fiz saber ao Papa Bento por diversas formas em nossa correspondência. Sem qualquer dúvida, ele cumpriu conscienciosamente suas obrigações papais cotidianas e nos ofereceu três úteis encíclicas sobre a fé, a esperança e o amor. Mas no tocante aos grandes desafios de nosso tempo, seu pontificado se apresenta cada vez mais como o das oportunidades perdidas, não como o das ocasiões aproveitadas:
- Desperdiçou-se a oportunidade de um entendimento perdurável com os judeus: o Papa reintroduz a súplica pré-conciliar em que se pede pela iluminação dos judeus e readmite na Igreja a bispos cismáticos, notoriamente anti-semitas, implementa a beatificação de Pio XII e só leva a sério o judaísmo como raiz histórica do cristianismo, não como uma comunidade de fé que perdura e tem um caminho próprio para a salvação. Os judeus de todo o mundo indignaram-se com o pregador pontifício na liturgia papal da sexta-feira santa em que comparou as críticas ao Papa com a perseguição anti-semita.
- Desperdiçou-se a oportunidade de um diálogo baseado em confiança com os muçulmanos: é sintomático o discurso de Bento em Ratisbona, no qual, mal assessorado, caricaturou o Islam como a religião da violência e da desumanidade, atraindo assim a duradoura desconfiança dos muçulmanos.
- Desperdiçou-se a oportunidade da reconciliação com os povos nativos colonizados na América Latina: o Papa afirma com toda a seriedade que estes “anelavam” pela religião de seus conquistadores europeus.
- Desperdiçou-se a oportunidade de ajudar os povos africanos na luta contra a superpopulação, aprovando os métodos anticoncepcionais e na luta contra a AIDS, admitindo o uso de preservativos.
- Desperdiçou-se a oportunidade de concluir a paz com as ciências modernas: reconhecendo inequivocamente a teoria da evolução e aprovando de forma diferenciada novos campos de pesquisa, como o das células-tronco.
- Desperdiçou-se a oportunidade de que também o Vaticano torne definitivamente o espírito do Concílio Vaticano II a bússola da Igreja Católica, impulsionando as suas reformas.
Este último ponto, estimados bispos, é especialmente grave. Este Papa frequentemente relativiza os textos conciliares e os interpreta de forma retrógrada contra o espírito dos padres do concilio. Ele se situa mesmo expressamente contra o Concílio Ecumênico, que, segundo o direito canônico, representa a autoridade suprema da Igreja Católica.
- Ele readmitiu na Igreja, incondicionalmente, os bispos da Irmandade Sacerdotal São Pio X, ordenados ilegalmente fora da Igreja Católica e que rechaçam o concílio em aspectos centrais.
- Apóia por todos os meios a missa tridentina medieval e ele mesmo celebra ocasionalmente a eucaristia em latim e de costas para os fiéis.
- Não implementa de fato o entendimento com a Igreja Anglicana, firmado em documentos ecumênicos oficiais (ARCIC), mas pretende atrair à Igreja católico-romana sacerdotes anglicanos casados, deixando de exigir deles o voto do celibato.
- Reforçou os poderes eclesiais contrários ao concílio, com a nomeação de altos cargos anti-conciliares (na Secretaria de Estado e na Congregação para a Liturgia, entre outros) e bispos reacionários em todo o mundo.
     O Papa Bento XVI parece afastar-se cada vez mais da grande maioria do povo da Igreja, que de todas as formas se ocupa cada vez menos de Roma e que, no melhor dos casos, ainda se identifica com sua paróquia e seus bispos locais.
     Sei que alguns de vós padeceis pelo fato de que o Papa se veja plenamente respaldado pela cúria romana em sua política anti-conciliar. Esta busca sufocar a crítica no episcopado e na Igreja e desacreditar aos críticos por todos os meios. Com renovada exibição de pompa barroca e manifestações teatrais diante dos meios de comunicação, Roma trata de exibir uma Igreja forte, com um “representante de Cristo” absolutista, que reúne em sua mão os poderes legislativo, executivo e judiciário.
     No entanto, a política de Bento fracassou. Todas as suas aparições públicas, viagens e documentos não são capazes de atrair em direção à doutrina romana a postura da maioria dos católicos em questões controvertidas, especialmente em matéria de moral sexual. Nem mesmo os encontros papais com a juventude, aos quais assistem especialmente os grupos conservadores carismáticos, podem frear os abandonos da Igreja ou despertar mais vocações sacerdotais.
     Precisamente vós, como bispos, o lamentareis em sua maior profundidade: desde o Concílio, dezenas de milhares de bispos abandonaram sua vocação, especialmente devido à lei do celibato. A renovação sacerdotal, assim como a de membros das ordens religiosas, irmãos e irmãs leigos, caiu tanto quantitativa como qualitativamente. A resignação e a frustração se estendem no clero, precisamente entre os membros mais ativos da Igreja. Muitos se sentem abandonados em suas necessidades e sofrem pela Igreja.
     Pode ser que este seja o caso em muitas de vossas dioceses: cada vez mais igrejas, seminários e paróquias vazios. Em alguns países, devido à carência de sacerdotes, se finge uma reforma eclesial e as paróquias se refundem, frequentemente contra a vontade, constituindo gigantescas “unidades pastorais” nas quais os escassos sacerdotes estão completamente extenuados.
     E agora, às muitas tendências de crises, adicionam-se ainda escândalos que clamam ao céu, especialmente todo o abuso de milhares de meninos e jovens por clérigos – nos Estados Unidos, na Irlanda, na Alemanha *** – tudo isto ligado a uma crise de liderança e de confiança sem precedentes.
     Não se pode abafar o fato de que o sistema de ocultação posto em vigor em todo o mundo perante os delitos sexuais dos clérigos foi dirigido pela Congregação para a Fé, de Roma, do Cardeal Ratzinger, (1981-2005), na qual já sob João Paulo II se compilaram os casos sob o mais estrito segredo.
     Ainda em 18 de maio de 2001, Ratzinger enviava um documento solene sobre os delitos mais graves (Epistula de delitos gravioribus) a todos os bispos. Nela, os casos de abusos se localizavam sob o secretum pontificium, cuja transgressão pode atrair severas penas canônicas. Com razão, pois, estão muitos que exigem ao então prefeito**** e agora Papa um mea culpa pessoal. Na Semana Santa, no entanto, ele perdeu a oportunidade de o fazer. Em vez disso, o Domingo de Ramos levou o decano do colégio cardinalício a levantar urbi et orbi o testemunho de sua inocência.
     As consequências de todos estes escândalos para a reputação da Igreja católica são devastadoras. Isto é algo que também confirmam já dignatários de alto nível. Muitos curas e educadores de jovens sem culpa e extremamente comprometidos padecem sob uma suspeita geral.
     Vós, estimados bispos, deveis levantar para vós mesmos a pergunta de como haverão de ser no futuro as coisas em nossa Igreja e em vossas dioceses. Claro, não queria esboçar para vós um programa de reforma. Isto eu já o disse em repetidas ocasiões, antes e depois do Concílio. Só queria colocar diante de vós seis propostas que – é minha convicção – serão respaldadas por milhões de católicos que carecem de voz:
1. Não calar: diante de tantas e tão graves irregularidades, os silêncio vos fará cúmplices. Ali onde considereis que determinadas leis, disposições e medidas são contraproducentes, deveríeis, pelo contrário, expressá-lo com a maior franqueza. Não envieis a Roma declaração de submissão, mas exigências de reforma!
2. Empreender reformas: na Igreja e no episcopado são muitos os que se queixam de Roma sem que eles mesmos façam algo. Mas hoje, quando em uma diocese ou paróquia não se frequenta a missa, o trabalho pastoral é ineficaz, a abertura às necessidades do mundo limitada, ou a cooperação mínima, não se pode descarregar isto sobre Roma, sem mais nem menos. Bispo, sacerdote ou leigo, todos e cada um, deverão fazer alguma coisa para a renovação da Igreja em seu âmbito vital, seja maior ou menor. Muitas coisas grandes nas paróquias e em toda a Igreja foram postas em ação graças à iniciativa de indivíduos ou de pequenos grupos. Como bispos deveis apoiar e alentar estas iniciativas e atender depressa as queixas justificadas dos fiéis.
3. Atuar colegiadamente: após um vivo debate e contra a sustentada oposição da cúria, o Concílio decretou a colegialidade do Papa e dos bispos, ao estilo dos Atos dos Apóstolos, onde nem Pedro agia sem o colégio apostólico. No entanto, na época pós-conciliar, os papas e a cúria ignoraram esta decisão central do Concílio.
Desde que o Papa Paulo VI, dois anos depois do Concilio, publicou uma encíclica para a defesa da discutida lei do celibato, a doutrina e a política papal voltaram a ser exercidas conforme o estilo antigo, não colegiado. Até mesmo na liturgia o Papa se apresenta como autocrata, frente ao qual os bispos, de que gosta de estar rodeado, aparecem como comparsas sem voz nem voto.
Não deveríeis, portanto, estimados bispos, atuar apenas individualmente, mas em comunidade com os demais bispos, com os sacerdotes e com o povo da Igreja, homens e mulheres.
4. A obediência ilimitada só se deve a Deus: todos vós, na solene consagração episcopal, prestastes perante o Papa um voto de obediência ilimitada. Sabeis, porém, igualmente que jamais se deve obediência ilimitada a uma autoridade humana, somente a Deus. Portanto, vosso voto não vos impede dizer a verdade sobre a atual crise da Igreja, de vossa diocese e de vossos países. Seguindo em tudo o exemplo do apóstolo Paulo, que confrontou a Pedro e teve que fazê-lo “face a face, porque se tornara repreensível” (Gl 2.11).
Uma pressão sobre as autoridades de Roma no espírito da irmandade cristã pode ser legítima quando estas não concordem com o espírito do Evangelho e sua mensagem. A utilização da linguagem vernácula na liturgia, a modificação das disposições sobre os casamentos mistos, a afirmação da tolerância, os direitos humanos, o entendimento ecumênico e tantas outras coisas só foram alcançados pela tenaz pressão vinda da base.
5. Aspirar a soluções regionais: é frequente que o Vaticano faça ouvidos surdos a demandas justificadas do episcopado, de sacerdotes e dos leigos. Com tanto maior razão se deve aspirar a conseguir soluções regionais de forma inteligente.
Um problema especialmente espinhoso, como sabeis, é a lei do celibato, proveniente da Idade Média e que com razão está sendo questionada em todo o mundo, precisamente no contexto dos escândalos por abusos sexuais. Uma modificação contra a vontade de Roma parece praticamente impossível. No entanto, isto não nos condena à passividade: um sacerdote que depois de madura reflexão pense em casar-se não tem que renunciar automaticamente a seu estado se o bispo e a comunidade o apóiam. Algumas conferências episcopais poderiam alcançar uma solução regional, ainda que fosse melhor aspirar a uma solução para a Igreja em seu conjunto. Portanto:
6. Exigir um concílio: assim como foi preciso um concílio ecumênico para a realização da reforma litúrgica, a liberdade de religião, o ecumenismo e o diálogo interreligioso, o mesmo acontece para se solucionar o problema da reforma, que foi interrompida agora de forma dramática. O concilio reformador de Constança no século anterior à Reforma (protestante) aprovou a celebração de concílios a cada cinco anos, disposição que, no entanto, foi burlada pela cúria de Roma. Seguramente esta fará o que puder para impedir um concílio do qual possa temer uma limitação de seu poder. Sobre todos vós está a responsabilidade de impor um concílio ou pelo menos um sínodo episcopal representativo.
O apelo que vos dirijo diante desta Igreja em crise, estimados bispos, é que ponhais na balança a autoridade episcopal, revalorizada pelo Concílio. Nesta situação de necessidade, os olhos do mundo estão postos sobre vós. Inúmeras pessoas perderam a confiança na Igreja católica. Para recupera-la só será necessário abordar de forma franca e honrada os problemas e respectivas reformas. Peço-vos, com todo o respeito, que contribuais naquilo que lhes cabe, sempre que possível em cooperação com os demais bispos. Mas, se necessário, também solitariamente, com “intrepidez” apostólica (Atos 4.29-31). Dai sinais de esperança a vossos fieis e uma perspectiva a nossa Igreja.
            Saúda-vos, na comunhão da fé cristã, Hans Küng.


Traduzido do alemão para o espanhol por Jesús Alborés Rey; traduzido do espanhol para o português por Sérgio Marcus Pinto Lopes. Revisão da tradução aqui publicada: Augusto Araujo
** Hans Küng é catedrático emérito de Teologia Ecumênica na Universidade de Tubinga, Alemanha, e presidente da Global Ethic.
*** E também aqui, no Brasil (nota do revisor).
**** “Prefeito”: referência ao cargo ocupado pelo então Cardeal Ratzinger antes de sua eleição como Papa Bento XVI, como Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé.

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