segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Blasfêmia: crime impossível



Carlos Alberto Lungarzo
Prof. Tit. (r) Univ. Est. Campinas, SP, Br.
21 de outubro de 2012
O código penal brasileiro, como os códigos de outros países, define o crime impossível. Este se encontra em seu artigo 17:
Não se pune a tentativa [de crime] quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.
Por exemplo, são crimes impossíveis:
1)    assassinar um cadáver;
2)    roubar-se a si mesmo;
3)     produzir lesões com um beijo a distância;
4)    pretender enganar uma árvore, e assim em diante.
Não menos impossível que este é o crime de blasfêmiapor conta do qual, muitas pessoas são presas, torturadas e assassinadas em países orientais, e algumas outras sofrem penas de prisão e multa, incluso nos países ocidentais, considerados “civilizados” e “democráticos”.
Há dois casos terríveis que aconteceram há algumas semanas, e que representam, por um lado, a barbárie de pretender punir um crime impossível e, por outro lado, a insanidade de gerar uma onda vandalismo com numerosos feridos e até mortos.
O primeiro é o caso de Rimsha Masihuma adolescente paquistanesa acusada de “ofender” o Al Qur’ãn. (Vide) O outro é o da reação demencial de bandas de fanáticos de diversos países, que protestaram por causa de um filme que “ofenderia” o profeta Maomé. (Vide). Este último caso não merece especial comentário, na minha opinião.
Estes exemplos se referem a “ofensas” de figuras ou objetos ditos “sagrados” venerados pela fé islâmica, mas também existem casos em que estas punições impossíveis se aplicam em outros credos, como o católico. O fato de que as condenações por blasfêmia sejam menores nos países cristãos, deve-se apenas a um acaso, e não ao fato de que a teocracia ocidental seja menos cruel que a oriental. Simplesmente, uma parte importante de países europeus conseguiu libertar-se (parcialmente) da teocracia no século 19, enquanto a maioria dos orientais não conseguiu.

O Caso de Rimsha Masih

Uma jovem paquistanesa pertencente à pequena comunidade cristã, chamadaRimsha (ou RiftahMasih, foi detida em Agosto desse ano pela polícia por uma suposta ofensa contra o dito “livro sagrado” do Islã, o Al Qur’ãn. O estado de abandono em que vive a enorme maioria de miseráveis do Paquistão é tão grande que não foi possível determinar sequer a idade da menina, pois ela não está registrada, oscilando as estimativas entre 11, 14 e 16 anos. Sabe-se que ela é doente mental, mas se desconhece a natureza exata da doença, supondo alguns que seja Síndrome de Down.
Rimsha foi encontrada com um livro queimado, cuja destruição talvez tenha sido o resultado da tendência ao fogo de algumas pessoas com disfunções mentais. Dentro desse livro, foram encontradas algumas páginas do livro “sagrado”. Encontrar estas folhas queimadas produziu uma bárbara e insana reação de um grupo de adultos que a acusavam de blasfêmia (ofensa aos símbolos sagrados, que no caso do islamismo é Al Qur’ãn), e se preparavam para seu linchamento.
Segundo disse a polícia no primeiro momento, ela foi detida para evitar que fosse linchada por essas hordas de fanáticos religiosos, que exigiam que se aplicasse contra a ele a pena de morte. Esta punição, repudiada na Europa, incluso para crimes gravíssimos, é comum nas teocracias para punir as “ofensas” contra os símbolos ditos sagrados. A policia aduziu que a queria proteger. Mas a jovem foi confinada numa prisão de alta segurança, que é um local um pouco exótico para proteger alguém.
O caso produziu uma fortíssima reação da opinião esclarecida mundial, mas encontrou pouca repercussão nos governos que se beneficiam de suas relações diplomáticas com o bárbaro estado. Os americanos, que tiram proveito da subserviência paquistanesa, apenas protestaram simbolicamente, e só seis senadores enviaram notas de repúdio a Islamabad.
O Papa se pronunciou, não por sentimento humanitário, mas porque o ataque contra a menina significava ameaçar a pequena comunidade cristã do Paquistão. Como diz a música de Violeta Parra, o santo padre estava preocupado por sua “pomba”.
As Nações Unidas protestaram com a pouca energia possível numa organização decadente, que não consegue nem garantir a neutralidade nuclear de Oriente Médio. Mas, de qualquer maneira, diversas agências internacionais e, sobretudo, numerosas organizações de direitos humanos, se manifestaram com bastante indignação. Como de hábito em questões de direitos humanos, o Brasil esteve “prudente”. Para que brigar com os algozes paquistaneses por causa de uma menina doente e pobre? Afinal, pode ser que Islamadab se interesse pelo pré-sal e até ajude com a sempre sonhada bomba atômica tupiniquim.
Entre diversas vocês respeitáveis, ouviu-se, como em outras épocas, a do governo socialista da França:
França há “exigido às autoridades paquistanesas libertar esta jovem”, e há reafirmado que “a simples existência do crime de blasfêmia viola liberdades fundamentais, como a liberdade de religião e de crença, e a liberdade expressão.” [Grifo meu] (vide)
Finalmente, Rimsha foi solta e só nos últimos dias os tribunais paquistaneses a “absolveram” numa primeira instância, algo que é totalmente absurdo, porque não se absolve a alguém que nunca cometeu nenhum crime.
Entretanto, a história não acaba aqui, porque o “julgamento” definitivo já foi adiado várias vezes.
Pior ainda: Rimsha não foi solta porque os carrascos tivessem sido iluminados por uma mínima faísca de humanidade… Não! Ela foi absolvida por uma razão tonta: o “crime” de blasfêmia foi cometido por um sacerdote paquistanês (um imã), que colocou entre as páginas queimadas pela menina algumas folhas do Al Qu’rãm.
Ele queria culpar a comunidade cristã da região de Rawalpindi para causar sua expulsão do lugar.
Mas, se Rimsha tivesse realmente queimado aquelas folhas, talvez ela teria ficado presa ou teria sido executada… no meio ao cinismo das potências ocidentais que falam de democracia, liberdade, direitos humanos e outras palavras nobres cujos correspondentes factuais desprezam.
Finalmente, em 18 de outubro, o ministro para a harmonia nacional Paul Bhatti prometeu que a menina e sua família seguiriam sobre a proteção do governo. Pode parecer inacreditável, mas o mais alto tribunal que julga o caso ainda não se manifestou, e ADIOU SEU VEREDICTO PARA 14 DE NOVEMBRO.
Lamentavelmente, a militância internacional contra esta atrocidade parece estar esgotada e não tem podido prover uma solução drástica ao problema. É natural que a luta seja tão árdua que quase ninguém resiste em permanente estado de protesto. Mas isto deve abrir, junto com o caso recente de Malala (a menina que foi ferida a tiros por assistir à escola, também em Paquistão), para que a minoria que possui alguma honestidade na ONU, proponha algumas medidas.
A punição por blasfémia deve ser considerada pelo Tribunal Penal Internacional como crime de lesa humanidade, e o conceito de liberdade religiosa deve ser relativizado. Se isso não aconteceu ainda é porque as grandes religiões do planeta movem trilhões de dólares em todo tipo de investimento (desde imóveis até armas e petróleo), embora também gastem muito na proteção jurídica de pedófilos.

Blasfêmia, Injúria Religiosa e Ódio Religioso

Estes três conceitos não devem ser confundidos. Uma coisa é a injúria religiosa contra um indivíduo ou uma comunidade. Isto pode oscilar de um insulto pessoal que merece repúdio moral, mas está sujeito ao direito privado, até uma injúria forte que coloca a quem a recebe numa situação de humilhação pública, constituindo, portanto, uma violação a seus direitos humanos.
Ao insultar uma pessoa por ser cristão, judeu, muçulmano, budista, umbandista, etc., a vítima está sofrendo uma ferida moral que consiste em desprezar seu valor humano, por considera-lo crente ou respeitoso numa fé ou seita que o injuriador repudia. Este insulto pode ser pessoal ou de grupo, e sua gravidade dependerá das circunstâncias em que foi proferida, da forma em que o ato do insulto tomou estado público, das consequências psicológicas ou morais para essa pessoa.
Tanto o valor da injúria como o tamanho da punição dependerá, em grande medida, na maneira em que a “vítima” se sente afetada. Como toda crença pacífica merece inicialmente respeito, também um ateu poderia se ofender se fosse injuriado. Mas, nesse caso, como em outros, a gravidade dependerá da situação particular e da apreciação do próprio injuriado. Por exemplo, se alguém, para me ofender, me chamando de “ateu de m…”, eu ignoraria totalmente a intenção do insulto, salvo que isso fosse feito de maneira reiterada e torna-se fisicamente impossível minha vida cotidiana. Nesse caso, poderia acusar o injuriador de perturbação da vida privada.
Observe que a injúria não seria me acusar de “ateísmo”, tampouco seria o desprezo pelo ateísmo, já que este é uma forma ideológica e não pode ser ofendida como se fosse um ser humano. O “delito” estaria originado na crença (que no caso deste exemplo seria falsa) do injuriador, de que eu me sentiria ofendido se fosse chamado de ateu.
Em geral, a injúria religiosa é um ataque contra uma pessoa, e não contra uma crença, pois as crenças são objetos abstratos e não podem ser factualmente atacadas.
Já a mensagem de ódio religioso é algo muito mais grave. Ele é um crime contra a humanidade e, dependendo de sua intensidade, pode produzir danos reais numa comunidade, como acontece também com as mensagens de racismo, de xenofobia, de homofobia, de misoginia, etc.
O holocausto dos judeus pelos nazistas foi resultado da pregação de ódio racial, mas também, parcialmente, religioso. Luteranos e Católicos alemães foram mobilizados contra outros alemães que tinham “sangue” hebraica não apenas pelos racistas oficiais do Reich, mas também pelos pastores e padres que exigiam o castigo dos que mataram a Cristo 2000 anos antes. (Pelo jeito, no direito canônico não existe prescrição, ou ela demora muito.)
A blasfêmia é algo totalmente diferente. Quando alguém critica, satiriza, trata sem respeito, etc., um símbolo dito “sagrado”, esta pessoa não está querendo ofender àqueles que acreditam na sacralidade do objeto.
O que ele pretende salientar é que não considera que esse objeto seja sagrado, e que não compartilha a convicção de alguém que considera esse objeto intocável.
Por exemplo: Muitas vezes, na América Latina, artistas progressistas desenharam cruzes católicas atreladas a aviões ou bombas, querendo simbolizar a cumplicidade da Igreja com ditaduras, guerras e o genocídios. Isso foi chamado “blasfêmia” pelos crentes, e até um prestigioso escultor argentino teve seu atelier destruído por vândalos financiados pela prefeitura de Buenos Aires da época. Em realidade, essas obras eram a descrição do ponto de vista de alguém que não acredita que os símbolos inanimados (duas barras de prata cruzadas, por exemplo, cum uma estatua necrológica pregada nelas) tenham qualquer qualidade de sagrado.
blasfemo denuncia a sacralidade como uma falsa crença, uma superstição, um fetiche. Isso não significa que os adoradores desses fetiches sejam desprezados pelo “blasfemo”. Ele apenas mostra sua rejeição por esse totemismo, e fixa uma oposição que, certa ou errada, tem todo o direito de manifestar.
Por outro lado, esse tipo de blasfemo contribui a iluminar as pessoas combatendo a superstição e tentando que os que ainda não estão totalmente mergulhados nas trevas, escapem do cabresto das castas sacerdotais.
Se você coloca um crucifixo de sua propriedade num local público e toca fogo em ele, podem acontecer várias situações:
  1. Você se limita a dizer que não acredita em seu caráter sagrado. Isso chama-seiconoclastia e é uma crença que existe até entre os próprios religiosos e possui uma história e uma influência muito grande. Por exemplo, os dissidentes cristãos gregos do século XI destruíram crucifixos e estátuas de santos para mostrar sua própria opinião sobre a adoração de objetos. Muitas seitas cristãs acham idolatria considerar certos objetos sagrados. Neste caso, simplesmente está sendo respeitada a liberdade de opinião.
  2. Se você aproveita a queima do crucifixo para provocar os católicos presentes, você pode estar proferindo uma injúria contra alguns deles. Se essa injúria é grave ou não dependerá de vários fatores específicos.
  3. Se, junto com a queima do crucifixo, você lança uma mensagem propondo a guerra contra os católicos, você está promovendo um crime contra a humanidade, algo como fizeram os nazistas com os judeus. Você pode ser seriamente punido, não por queimar um fetiche, mas por propor agressão contra os adoradores desse fetiche. Com efeito, os símbolos são fetiches, mas seus adoradores são seres humanos que merecem ser tratados com dignidade.
 Na linguagem atual, (1) é uma blasfémia e, num país minimamente civilizado, não pode ser delito. (2) é uma injúria, cuja gravidade é relativa. (3) É um convite ao ódio de grupo e é um crime gravíssimo.
Cabe ainda a possibilidade de que você esteja queimando um crucifixo sobre o qual não tem direito de propriedade. Nesse caso, você pode ser acusado de roubo ou destruição da propriedade alheia.
Observe que esta idéia de objetos sagrados acontece também com símbolos patrióticos e não apenas religiosos. Atualmente, a maioria dos países, incluindo os Estados Unidos, consideram que a dessacralização dos símbolos nacionais não é uma infração e faz parte do direito de protesto. Entretanto, alguns vestígios de arcaísmo ainda dominam em certos países, como a Suíça e a Alemanha.
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Carlos Alberto Lungarzo é matemático, nascido na Argentina, e mora no Brasil desde sua graduação. É professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo, e milita em Anistia Internacional desde há muito tempo, nas seções mexicana, argentina, brasileira e (depois do fim desta) americana. Tem escritos vários livros e artigos sobre lógica, estatística e computação quântica, mas seu interesse tem sido sempre os direitos humanos. 
http://www.consciencia.net/blasfemia-crime-impossivel/

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