sábado, 9 de março de 2013

Menina gosta de rosa, menino gosta de azul

Neste mês, onde comemoramos o Dia Internacional das Mulheres, abstenho-me de colocar fotos e frases feitas. Postarei alguns artigos que considero primorosos para a reflexão sobre a condição feminina, e os conflitos de gênero da sociedade ocidental moderna. O primeiro texto é maravilhoso, e tomara que seja lido muitas vezes, pois nos remete ao silêncio, para sedimentar os muitos conceitos trazidos à tona. Parabéns Gunter Zibell.

Gunter Zibell
Uma coisa é reconhecer a igualdade de direitos entre gêneros. As monarquias que restaram no mundo desenvolvido já reconhecem que a herança ao trono será para o descendente mais velho, incluindo filha não única, não mais para o varão mais velho e/ou para sobrinho (caso das monarquias mais machistas, como o antigo Reino da França.) Os menos desenvolvidos estados de tradição islâmica ou hinduísta já vêem incorporando em suas legislações o direito a herança para viúvas e que esta seja igualmente repartida para filhos de qualquer gênero. Os momentos, lugares e impactos são diferentes, a direção é a mesma.
A tendência é inequívoca, mas seu ritmo é lento. Em parte porque subsiste uma crença de que mulheres e homens seriam naturalmente diferentes, com relevância além das evidentes características físicas e aspectos ligados à reprodução. Outra coisa, bem mais difícil portanto, é reconhecer que as diferenças podem ser desimportantes.
Até meados do século XX subsistia uma “teorial geral da inferioridade” (mulheres não precisariam votar, mulheres não seriam ideais para abrir empresas, mulheres seriam em algumas legislações quase “incapazes”, sem passaporte, por ex.) A realidade evidentemente mostrou tudo isso ser uma grande ficção. A capacidade feminina (de reagir bem e com sucesso a situações de pressão) ficou muitas e muitas vezes evidente ora pelas artistas e cientistas que usaram pseudônimos, ora pelas viúvas que tocaram famílias e heranças com maestria. Se as teorias do século XIX se revelaram errôneas, não pode ser esse o caso das teorias que recebemos do século XX?
O discurso da diferença sempre é realimentado, às vezes para o bem, por necessidades materiais inadiáveis de uma sociedade. Mas às vezes por inércia, para não abandonarmos de vez o que acreditamos. Se num tempo se dizia que só meninos deveriam ir à escola, no tempo seguinte se diz que meninas devem ir apenas até o “normal”. No nosso tempo há a visão de profissões mais ou menos femininas. O que virá no futuro?
No Brasil (e no mundo desenvolvido também) a maioria ainda acredita que é inconveniente legislar sobre igualdade de salários por gênero. O resultado é que mulheres ganham de 60 a 80% para as mesmas funções em quase todos os lugares, com a maior exceção sendo o setor público. Quem é exatamente beneficiado por essa situação, se é que há alguém, não é muito discutido.
Agora vivemos a “teoria geral da diferença”, reproduzida de incontáveis modos. Alguns exemplos:
- mulheres agora já são ótimas para trabalhar... até nível gerência. Mas ainda não apresentariam as características de liderença, foco (e o que mais o discurso inventar) para serem as “executivas”, “a CEO”. Ora, se o paradigma anterior, mulher-não-deveria-construir-carreira, era furado, porque não ver como provável que este também seja?
- mulheres são menos agressivas, mais sensíveis. Até aí “beleza”, há o reconhecimento, finalmente, que mulheres são “melhores” (um discurso compensatório, mas que não traz dinheiro ou poder). Mas mesmo assim (ou até por isso) mulheres não se candidatam muito a cargos eletivos. No Brasil as exceções de uma presidenta e uma governadora confirmam a regra: nem 10% do Congresso é feminino. Dos representantes nas reuniões do G-20 só 5 (Brasil, Argentina, Alemanha, Austrália e, agora, Coreia do Sul) são mulheres. O cerimonial do G-20 é tão machista que inventa atividades e fotos oficiais para as esposas dos líderes, mas implicitamente assume que os Srs. Kirchner (quando vivo) e Merkel, por serem homens, teriam coisa melhor a fazer que acompanhar as esposas-líderes. A acreditar na teoria geral naturalista das diferenças, que atribui qualidades inclusivas, agregadoras e pacíficas às mulheres, não deveríamos já votar em massa por líderes capazes de abrir mão de guerras e da destruição do meio-ambiente, capazes de realmente se preocupar com educação e saúde? Seria uma coerência útil para uma desinformação geral.
Mais que na atividade econômica e na política, onde se busca reforçar as diferenças de gênero é na atividade sentimental do cotidiano. Há uma fantasia generalizada, por exemplo, que mulheres devam se preocupar (até excessivamente é permitido) com aparência e homens em parecer austeros e vencedores. Não há nada de natural nisso. Homens se enfeitavam também até os paradigmas burgueses da Revolução Industrial se afirmarem. Nada mais austero e vencedor que uma mulher tomar conta de proles que parecem infinitas, às vezes se encadeando com os netos dos filhos mais velhos. Ou assumir com muito maior facilidade o encargo da dupla jornada de trabalho.
Mas um número sem fim de revistas em bancas, artigos em portais, novelas e anúncios de bens de consumo, mais possíveis em sociedades que atingiram a afluência, que ultrapassaram o patamar do atendimento a necessidades básicas, faz apenas que reforçar as construções da diferença. Vemos sempre como homens devem se comportar em paqueras, como mulheres devem se vestir para seduzir, um peculiar jogo em que as regras são diferentes para os lados. Não é muito claro, quando quase todos podem tirar uma carteira de motorista, porque nos anúncios de carros em geral são homens que aparecem, porque fica meio automático isso de num casal o homem dirigir. Em geral, o dia-a-dia da convivência traz maior realismo para as relações. Porém, às vezes, traz conflitos insolúveis (por exemplo, quando o homem não se toca que aquilo de “comandar” era apenas parte do jogo. “Obedecer” não faz parte mais do juramento de casamento.)
Mas um mundo de diferenças é o que todo mundo acredita (ou diz que acredita) e reproduz (mesmo quando não acredita) sem questionar. Não vamos imaginar que alguém, por vontade individual, irá conseguir romper com todos os códigos culturais acumulados, isso seria uma gigantesca ilusão. Mas pensar um pouco mais fora do quadrado é possível. Basicamente é necessário se perguntar: “Será que essas diferenças de gênero que julgo naturais não são, quer em parte quer em sua maioria, apenas papéis ensinados? O que há de natural em menino gostar de azul e menina de rosa?”
Faz falta que os livros de auto-ajuda digam mais o seguinte : “Se você se sente bem em representar determinado papel ou escolha, vá em frente. Se vai contra o que você gosta, ignore.” Isto é, busque a profissão que desejar, use a cor que realmente gosta, namore do seu jeito, sem se importar com o que os outros vão pensar. Mesmo quando há concessões dadas pelo bom comportamento social, há uma ditadura da maioria por trás.
Há uma boa quantidade de trabalhos em antropologia (e livros de muito sucesso) todos voltados não mais para serem machistas ou perpetuadores de diferenças de direitos, mas agora pela “teoria da diferença natural” (ou psicologia evolutiva), como se isso fosse socialmente neutro. Buscam exemplos no homem “caçador” das cavernas (seriam ágeis, com habilidades de visão espacial – perfeitos para piloto de avião, portanto) e na mulher do começo da agricultura (capazes de moer grãos e amamentar crianças ao mesmo tempo, multitarefeiras, logo, ideais para algumas áreas nas empresas.) Surgem até teorias sobre “disseminação do sêmen”, para justificar a (mais propalada que real) tendência de homens buscarem alternativas sexuais fora do casamento, mas sem explicar como conciliar isso com um número mais ou menos igual de homens e mulheres. Às vezes a ciência (natural ou social) imita a vida conservadora...
Mas mulheres são frequentemente diretoras de R.H. e de Marketing porque é isso que deixaram, porque é nisso que o dique ainda não se rompeu. As pessoas não fazem as coisas porque é natural para elas, fazem as coisas que percebem permitidas para elas. O jogo é chamar coisas de naturais e o resultado é a realimentação disso, e, como às mulheres se lhes reservaram os papéis em torno de saúde, educação, comunicação, fica parecendo “natural” para a geração seguinte que mulheres sejam a maioria nessas tarefas (quase todo o corpo discente no ensino fundamental, por exemplo) e por aí vai. Homens também são vítimas desse sistema, são ensinados, por exemplo, a sempre engolir para si suas fragilidades e carências, infartos e depressão que venham como consequência. Qual é a vantagem quando, às vezes teleguiado por valores, um homem evita o namoro com uma mulher mais velha ou de maior sucesso profissional?
Seria apenas um detalhe que, em um mundo onde mulheres são metade da força de trabalho assalariada, e mais da metade no ensino superior, as profissões “naturalmente femininas” são as pior remuneradas? Mulheres são menos desenvoltas, na média, em jogos e exatas porque não gostam ou porque não foram estimuladas? Homens não fazem mais de uma atividade ao mesmo tempo porque não gostam ou por que nunca foram cobrados disso?
Podemos perfeitamente continuar “brincando de gênero” nas nossas vidas. Não é necessário sequer um esforço para abandonar a zona de conforto adquirida e aprendida. Só que pode ser mais gratificante e interessante jogar tendo a consciência de que as regras são artificiais, não naturais. A facilidade para entender as mudanças do mundo (e as demandas do “outro”) se torna mais presente.
1) É possível até que exista uma ou outra diferença comportamental (e/ou de habilidade) por gênero. Mas a honestidade intelectual do inconsciente coletivo deveria reconhecer que a) são irrelevantes para atividades intelectuais; b) a tecnologia dizimou as diferenças de porte físico em quase todos os trabalhos, tudo o que surge de relevante e de novo já é “comum de dois gêneros” (isto é, toda a economia de serviços e a pesquisa científica.)
2) É provável que as diferenças reais por gênero sejam muito menos representativas do que as socialmente construídas. Isso significa que uma quantidade imensa de injustiças, na forma de tolhimento de potencial feminino (mas também masculino), pode estar sendo continuamente perpetrado.
3) Independentemente da igualdade de acesso ao poder e mando nas sociedades, o paradigma que estamos vendo predominar é o dos papéis “yang” (um modo simplificado de agrupar características e funções tidas no imaginário como masculinas.) Mulheres ganham (por interesse também do sistema econômico e seus modos de produção) direitos,  posições e oportunidades, mas como cópias do “masculino”. Não cabe pensar se não há um grande equívoco nisso? Se a teorização em torno da diferenciação tiver cabimento, deve haver muita coisa do universo “yin” a estimular e isso pode estar sendo menosprezado.
4) Uma das críticas, que me parece pertinente, ao feminismo, é o foco na superação da “diferença artificial”, mas com a ascensão da “igualdade total” (possivelmente também artificial, mas menos injusta e menos viesada culturalmente.) Reconhecer a igualdade “média” entre gêneros (e o direito a se buscar isso) não deveria, no entanto, representar a anulação das diferenças “dentro do gênero”.  Devem ser buscadas novas oportunidades, um espectro maior de papéis a exercer, quem é tolhido deve deixar de se sentir assim. Mas por que reprimir quem se sente bem na construção familiar ou social que adotou por livre opção, exercendo assim seu potencial de modo gratificante? Igualdade de alternativas para ambos os gêneros não pode ser a imposição de apenas uma alternativa (a busca do sucesso competitivo) para todas as pessoas.
Completando o quadro, a reprodução deixou de ser paradigma na sociedade. Líderes políticos ou religiosos gostem ou não, pouca coisa mudou tanto na humanidade nos últimos 50 anos como a fecundidade. O fundamentalista Irã, por exemplo, é um dos lugares onde esta mais caiu nos últimos 30 anos. Há tentativas em países desenvolvidos (EEUU, França, Reino Unido) para fazer com que a natalidade volte pelo menos ao mínimo de manutenção da população (2,1 filhos por mulher), mas de efeito incerto no longo prazo. A população no mundo segue crescendo pelo envelhecimento, resultado dos progressos da medicina e da produção de alimentos, mas em quase todo lugar o número de nascimentos é cada vez menor.
Se a base histórica para a divisão de papéis por gênero foi a reprodução (desde a difícil mobilidade por uma gestação ao ano no início da humanidade até a construção mais recente dos conceitos de instinto maternal e infância), quais os papéis sociais destinados para os possíveis, talvez prováveis, 30% ou mais de homens e mulheres que atualmente nascem e que nunca irão assumir o papel de genitores? Fará diferença ser homem ou mulher?
Ainda vamos aprender e desaprender muita coisa.
http://advivo.com.br/blog/gunter-zibell-sp/menina-gosta-de-rosa-menino-gosta-de-azul-0

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito gentil! E obrigado por divulgar. Se tiver facebook por favor me adicione (uso o mesmo nome)
Um grande abraço
Gunter Zibell

Anônimo disse...

Muito gentil! E obrigado por divulgar. Se tiver facebook por favor me adicione (uso o mesmo nome)
Um grande abraço
Gunter Zibell

Postagem em destaque

A importância do Ponto de Referência

O ÂNGULO QUE VOCÊ ESTÁ, MUDA A REALIDADE QUE VOCÊ VÊ Joelma Silva Aprender a modificar os nossos "pontos de vista" é u...